Entre regras e imaginação: A complexidade de D&D e o renascimento do Old School
Entenda por que muitos jogadores estão trocando D&D por sistemas Old School mais leves e diretos.
Por: Zamboman | 19/05/2025
O mundo do RPG de mesa é vasto, vibrante e — por vezes — dividido. No coração desse universo pulsa um nome inconfundível: Dungeons & Dragons (D&D). Desde os anos 70, o sistema criado por Gary Gygax e Dave Arneson tem servido como porta de entrada (e labirinto) para milhares de jogadores em todo o mundo.
Mas enquanto muitos o consideram a espinha dorsal do hobby, outros o veem como um colosso de regras que, apesar de prometerem imersão, também impõem barreiras. É justamente nesse dilema entre profundidade e acessibilidade que surge um contraponto poderoso: o renascimento do movimento Old School.
A complexidade do D&D — especialmente em sua quinta edição — tem influenciado profundamente a forma como jogadores se relacionam com o sistema, seja pelo fascínio da profundidade, seja pelo peso das exigências. Em meio a esse cenário, cresce o interesse por sistemas mais simples e diretos, inspirados na era Old School. Mais do que uma saudade dos tempos antigos, essa preferência revela um desejo por experiências mais leves, criativas e centradas na liberdade narrativa — onde a diversão vem antes das regras.
Dungeons & Dragons: Entre a glória e o peso das regras
Não é incomum ver novos jogadores se encantarem com a ideia do RPG — apenas para darem de cara com uma muralha de informações. A atual estrutura de D&D, com seus três livros principais (Livro do Jogador, Livro do Mestre e Livro dos Monstros), é impressionante… e também intimidadora. São centenas de páginas cheias de regras, tabelas e exceções que, em vez de convidar, podem desencorajar.
Um comentário recorrente em fóruns de iniciantes ilustra bem essa sensação:
“Eu sei que para aprender a jogar precisa ler o Livro do Jogador e dos Monstros… e como são livros extensos, acredito que até domingo não terminarei de lê-los.”
A sensação de que “precisa ler tudo antes de jogar” é um bloqueio comum — e muitas vezes desnecessário, mas compreensível. Afinal, o jogo parece exigir um “pré-requisito acadêmico” antes de chegar à mesa.

Critical Role, uma das maiores mesas de veteranos do RPG. | Fonte: Critical Role
D&D 5E é, de fato, mais enxuto que suas versões anteriores (como a 3.5E), mas ainda assim mantém um sistema robusto e detalhado. Há regras para quase tudo: movimento em terreno difícil, cobertura parcial, combate montado, ações de prontidão, iniciativa, e muito mais.
Esse detalhamento permite simulações precisas, mas também transforma o jogo em algo mais técnico do que narrativo — pelo menos nas mãos de mestres menos experientes. O que deveria ser uma aventura épica pode se tornar uma sequência de consultas a páginas, discussão de exceções e debates sobre alcance e linha de visão.
Para muitos veteranos, isso é parte do charme. Para iniciantes, pode parecer que entraram num jogo de estratégia complexa e não numa história interativa.
Outra camada da complexidade aparece já na criação do personagem. Escolher raça, classe, histórico, alinhamento, perícias, talentos, equipamentos e magias… é quase como montar um pequeno sistema solar de opções interdependentes. Em edições como a 3.5E, essa complexidade atinge seu auge, com builds otimizadas e “combos” poderosos que exigem domínio profundo do sistema.
Isso pode ser divertido para jogadores que amam “min-maxing” e teoria de builds, mas para quem só quer jogar um elfo arqueiro e viver aventuras, pode soar como um excesso de burocracia.
O dilema do balanceamento e o chamado do velho estilo
O conceito de “nível de desafio” em D&D 5E deveria oferecer um norte para mestres ao planejar combates. Em teoria, um inimigo de mesmo nível que os personagens oferece uma luta justa. Na prática? Nem sempre.
Jogadores mais experientes apontam falhas sistemáticas nesse cálculo. Um grupo de quatro personagens de nível 5, bem construídos, pode derrotar com facilidade inimigos tidos como “desafiadores”. Do nível 10 em diante, o jogo muda drasticamente: os personagens tornam-se tão poderosos que a lógica do desafio se rompe. O mestre, então, se vê forçado a criar inimigos superespecíficos ou então aceitar que combates serão rápidos e desequilibrados.
A frustração aparece dos dois lados da tela: jogadores que não sentem risco e mestres que veem suas ameaças ruírem como papel molhado. A tentativa de balancear encontros vira um exercício de malabarismo.
E aqui entra o ponto-chave: será que o equilíbrio é realmente necessário?
Claro, há nostalgia envolvida. Muitos jogadores que viveram a explosão do RPG nos anos 80 e 90 encontram nas aventuras Old School a chance de reviver o encantamento da infância. Mas o sucesso do OSR vai além da memória afetiva.

Old Dragon, um dos favoritos aqui do UniversoRPG. | Fonte: Buró Brasil
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Essa abordagem reconecta o RPG com seu núcleo criativo: não importa o que está na ficha, importa o que o jogador descreve. Um guerreiro que amarra cordas em flechas com frascos de óleo para incendiar um covil de goblins não está usando uma manobra de combate — está usando imaginação. E isso é premiado, não penalizado.
Diferente de muitos sistemas modernos, o OSR não oferece segurança para os personagens. Não há curvas balanceadas nem encontros calibrados. Um combate errado pode significar morte em segundos. Isso devolve ao jogador a sensação de que cada decisão importa, e que a sobrevivência é um feito a ser comemorado.
O mestre também tem mais liberdade. Com menos regras para gerenciar, pode focar na condução da história, criar dilemas morais, tramas envolventes, e mundos reativos. Regras servem como suporte — e não como grade.
No coração do Old School está uma filosofia simples: “rulings, not rules” — julgamentos do mestre substituem regras escritas. O jogo ganha fluidez, e o grupo cria uma experiência única, sem medo de errar a “forma certa” de jogar.
Isso não significa desorganização. Pelo contrário: mestres que usam sistemas OSR geralmente estabelecem claramente o “tom da casa”. Mas há espaço para a interpretação e para o improviso — algo que a rigidez dos sistemas modernos tende a engessar.
Complexidade x Acessibilidade: Existe um meio-termo?
Quando a 5ª edição de Dungeons & Dragons foi lançada em 2014, ela veio com uma promessa clara: simplificar. Após a recepção mista da 4ª edição — que muitos consideraram “videogamificada” demais —, a Wizards of the Coast buscou resgatar o espírito das edições clássicas, mas sem abrir mão da profundidade que a 3.5 havia estabelecido.
As mudanças foram notáveis:
- As miniaturas e mapas quadriculados se tornaram opcionais.
- As perícias foram reduzidas e reorganizadas de maneira mais intuitiva.
- Muitos testes se resumiram à famosa fórmula 1d20 + modificador.
- Regras como vantagem/desvantagem substituíram cálculos complexos de bônus e penalidades acumulativos.
Esses ajustes tornaram o sistema mais limpo em comparação às versões anteriores, e abriram espaço para mais foco narrativo. Porém, mesmo com esse esforço, muitos jogadores ainda consideram o sistema “denso”, especialmente na hora de aprender a jogar do zero.
A maneira como um jogador percebe a complexidade de um sistema varia bastante com sua experiência prévia. Para quem já domina RPGs, a 5E é considerada uma das edições mais fáceis de se aprender. Um jogador comentou em uma comunidade online:
“Eu considero o D&D 5E um sistema fácil. Acho que pode ser um pouco mais difícil para quem tem mais dificuldade com cálculos, mas o sistema não é tão complexo.”
Essa percepção é válida — para veteranos. O problema está na diferença entre “relativamente simples” e “realmente acessível”. Para quem nunca jogou RPG, preencher uma ficha de personagem de 5E pode ser como montar um carro com as peças jogadas na sala.

A “esquecível” 4ed do D&D. | Fonte: Pinterest
O aprendizado do sistema exige familiaridade com conceitos que não fazem parte do cotidiano da maioria das pessoas: iniciativa, testes de resistência, pontos de vida, slots de magia, bônus de proficiência, etc. Sem contar o uso de termos como “ação bônus” e “condições de combate”, que exigem um glossário próprio.
Mesmo com tutoriais, vídeos e PDFs gratuitos, a curva de aprendizado do D&D 5E ainda é considerável. Jogadores novatos frequentemente se sentem perdidos nas primeiras sessões — não porque o sistema seja “difícil”, mas porque há muitos elementos simultâneos a serem absorvidos.
O que a 5E tenta fazer é oferecer uma estrutura que acompanhe o crescimento do jogador. No início, você usa apenas ataques simples e testes básicos. Com o tempo, vai incorporando ações complexas, magias, habilidades passivas e interações táticas. Isso funciona bem com grupos dedicados e mestres pacientes — mas pode frustrar aqueles que esperam “jogar direto”.
Por isso, muitos grupos têm adotado abordagens híbridas:
- Usar fichas pré-prontas nas primeiras sessões.
- Limitar opções de classe e raça no início.
- Introduzir magias e habilidades aos poucos.
- Ou até mesmo… trocar o sistema por algo mais leve, como os títulos do movimento OSR.
No fundo, o que vemos aqui não é apenas uma discussão sobre a complexidade “técnica” do sistema — mas sobre expectativas. O D&D moderno é feito para oferecer possibilidades detalhadas e suporte robusto a todas as situações possíveis em jogo. Isso é ótimo para quem quer explorar sistemas táticos, campanhas longas e universos ricos.
Já o estilo Old School e seus derivados OSR priorizam a liberdade interpretativa, a improvisação e o “faça você mesmo” do mestre. O que para uns é “falta de regras”, para outros é espaço criativo.
A regra de ouro é a diversão
Dungeons & Dragons continua sendo o sistema mais conhecido e jogado do mundo por uma razão simples: ele funciona. Oferece um universo rico, cheio de possibilidades, com ferramentas completas para quem gosta de estrutura e opções. Ao mesmo tempo, seu nível de detalhamento e interdependência de regras pode afastar novos jogadores ou frustar mestres que preferem improvisar.
Por outro lado, o movimento Old School Renaissance (OSR) recupera a leveza dos primeiros dias do hobby, onde o mestre era mais árbitro do que técnico, e os jogadores confiavam mais na descrição do que nas estatísticas. Seu sucesso recente não se deve apenas à nostalgia, mas ao desejo genuíno de recuperar uma experiência de jogo mais ágil, imprevisível e narrativa.
Ambos os estilos têm seu valor. A complexidade de D&D oferece profundidade e possibilidades. A simplicidade do Old School devolve protagonismo à imaginação. Nenhum é melhor ou pior — apenas diferente.
Para quem está começando agora ou para quem está cansado de carregar pilhas de livros, experimentar uma aventura Old School pode ser uma lufada de ar fresco. Já para quem ama montar builds, estudar magias e explorar regras avançadas, D&D 5E continua a ser um terreno fértil.
O verdadeiro segredo está em saber o que o seu grupo gosta. RPG é uma experiência coletiva, e o sistema é apenas a ferramenta. Se vocês se divertem com 300 páginas de regras, ótimo. Se preferem improvisar tudo com um d20 e uma tabela de reações aleatórias, melhor ainda.
No fim das contas, a melhor edição, o melhor sistema, a melhor regra… é aquela que faz sua mesa sorrir ao final da sessão.

Marcelo JK “Zamboman”
Jogador e Mestre de RPG desde a época em que os dinossauros caminhavam pela Terra. Fã de ficção científica, mestre de Star Wars Saga e mestre em tirar aventuras improvisadas da cartola.