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Call of Cthulhu e a ficção científica

Dicas para narrar Chamado de Cthulhu em um cenário de Ficção Científica.


Por: Mantsor | 04/12/2018

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Compêndio de Aventuras Vol I

Apresentamos algum tempo atrás um cenário alternativo para Chamado de Cthulhu, onde os investigadores eram desafiados a enfrentar um apocalipse zumbi. A ideia aqui hoje é trazermos dicas para outra ambientação pouco comum em Cthulhu, que são os cenários de ficção científica, sobretudo aqueles que envolvem exploração espacial.

Existem diversas fontes de inspiração para terror espacial que os narradores podem aproveitar, tais como os filmes Aliens, O Enigma do Horizonte, Sunshine, Pandorum, Viagem a Lua de Júpiter, Spectral, Cloverfield Paradox e os jogos Dead Space, Doom 3 e Alien Isolation.

O RPG Chamado de Cthulhu sempre apresentou diversas alternativas de ambientação além dos tradicionais anos 1920, época comum a maioria da histórias de Lovecraft. Até a sexta edição, o livro básico costumava trazer regras e fichas para 3 épocas distintas: os anos 1890 da Inglaterra Vitoriana, os clássicos anos 1920 e a época atual (também abordada no suplemento Cthulhu Now). Com a sétima edição, os anos 1890 ficaram restritos ao suplemento Cthulhu by Gaslight. Além disso, temos também os suplementos Dark Ages (Idade Média), Invictus (Roma Antiga) e Down Darker Trails (Velho Oeste).

Cenários e Suplementos de Sci-Fi

Embora poucos saibam, a temática de ficção científica também já acompanha o jogo desde longa data. Alguns cenários oficiais que já abordaram esse tema foram:

  • Horror Planet (do livro Blood Brothers);
  • Bad Moon Rising (do Great Old Ones);
  • Blood Moon (do Strange Aeons);
  • Time After Time (do Strange Aeons II);
  • My Little Sister Will Make You Suffer (do Cthulhu Britannica);
  • Archimedes 7 (Ato 3 do Curse of Yellow Sign);
  • The Icarus Project (da revista Worlds of Cthulhu #2).
Terror no espaço com Call of Cthulhu

O terror clássico em aventuras espaciais, o passageiro desconhecido. | Fonte: ArtStation

Tivemos também algumas monografias (suplementos criados por fãs que levam um selo da Chaosium), com destaque para a Cthulhu Rising (que teve várias aventuras e outros materiais lançados, mas infelizmente foi descontinuada), a Once Men (fortemente inspirada no filme Enigma do Horizonte) e a End Time (que retrata um futuro apocalíptico dominado pelos Grandes Antigos).

Outros sistemas também já combinaram ficção com Cthulhu, porém sem manter o mesmo clima de terror característico de CdC: CthulhuTech (onde a humanidade está em guerra contra criaturas dos Mitos e mechas são comuns) e GURPS Cthulhupunk (que possui uma pegada mais voltada para o estilo Cyberpunk dos anos 90)

E a sétima edição?

Infelizmente ainda não há nenhum grande suplemento ou aventura atualizada. Com o lançamento dos novos livros básicos, foi lançado também uma espécie de suplemento de atualização de regras, o Cthulhu Through the Ages, que apresenta uma conversão para a sétima edição de suplementos clássicos como Dark Ages, Gaslight e Invictus.

Além disso, há uma pérola escondida nesse livro, que é um mini-cenário de ficção científica, o The Icarus (não confundir com o cenário The Icarus Project já citado). Embora curto, ele já ajuda um pouco ao apresentar algumas novas ocupações e habilidades futuristas. Outra opção ainda é o clone de CdC conhecido como New Horizon (que você pode conferir nesse link). Ele apresenta uma extensa lista de habilidades e ocupações, além de equipamentos, regras para psiquismo, andróides, IAs e até mesmo um cenário introdutório (The Last Log).

Agora que já temos algumas referências para construir nossos investigadores, vamos às dicas para criação de aventuras!

No espaço, ninguém pode ouvir você gritar

As histórias clássicas de Lovecraft, em sua maioria, empregam o isolamento como um dos principais ingredientes para criar uma atmosfera de desolação e impotência para os protagonistas. Seja uma fazenda, casa, ruína, pântano, ilha ou até mesmo uma pequena cidade, a “civilização” quase sempre se encontra a vários quilômetros de distância. Nos Estados Unidos dos anos 20 não era preciso muito esforço para se chegar num local inóspito, dadas as limitações dos meios de transporte, comunicações e a ainda incipiente urbanização.

Mas numa ambientação futurista, dominada por megalópoles, veículos supersônicos, comunicações globais e outras maravilhas tecnológicas, não há muito espaço para a criação de um cenário desolado na Terra. Por outro lado, as histórias de ficção oferecem uma possibilidade ainda mais assustadora de isolamento: a vastidão do espaço e de uma infinidade de mundos inexplorados. Esse é um terreno fértil para aquele que é praticamente um subgênero da ficção: o terror espacial.

Titan Space Station

A estação espacial Ttitan, de Dead Space. Quem jogou sabe dos problemas por lá. | Fonte: Dead Space Wikia

Considerando ainda que muitas das criaturas dos Mitos são de origem extraterrestre, temos a combinação perfeita de elementos para criar cenários com um clima verdadeiramente angustiante e desesperador, onde as possibilidades de fuga / busca por socorro são muito mais remotas.

Resolvemos então dividir nossas dicas de aventuras de terror espacial lovecraftiano em duas categorias: as aventuras onde o terror tem origem interna ou próxima dos investigadores e aquelas onde eles vão até um local distante, ao encontro do terror.

Houston, temos um problema

Quando o homem resolve explorar os confins do universo, muitas coisas podem dar errado. Basta vermos quantas missões reais resultaram em desastres dentro do próprio sistema solar. Sondas que se espatifaram nos planetas, que perdemos contato ou que foram perdidas por erro de órbita.

Agora imagine missões tripuladas no espaço profundo, onde problemas misteriosos acometem a missão. Podem ser de origem mundana (um defeito no suporte de vida) ou de origem sobrenatural (uma entidade alienígena que resolve se apossar dos tripulantes) – o resultado é que rapidamente os investigadores vão estar em pânico tentando encontrar uma solução antes de serem tomados pela loucura ou acabarem mortos.

Neste tipo de cenário é importante o fator de incerteza: os investigadores foram pegos desprevenidos e não conseguem identificar a causa do problema ou a sua solução imediatamente.

Um clichê típico é que eles acabaram de despertar de um processo de hibernação / animação suspensa e se deparam com algum elemento desconcertante. Aqui vão algumas sugestões:

  • O computador da nave está emitindo vários alarmes de problemas nos sistemas;
  • Os investigadores perderam sua memória e não sabem onde estão e qual o objetivo da missão;
  • A nave está em rota de colisão com algum objeto / buraco negro / estrela;
  • O computador alerta para a presença de um organismo desconhecido na nave.
Ponte de comando abandonada

A típica ponte de comando abandonada… | Fonte: Alien Isolation

Mesmo que existam muitas pessoas a bordo (como numa nave de colonização), é importante manter a noção de isolamento/impotência: pode ser que somente poucas pessoas foram despertadas (por serem parte da tripulação e não passageiros), as outras pessoas podem ter morrido por um defeito no sistema de animação suspensa, elas podem estar infectadas por alguma doença ou pior, enlouqueceram por algum motivo desconhecido e estão atacando umas às outras!

O filme Passageiros (2016) apresenta ainda outro tipo de solução, onde o isolamento é parte do dilema de quem despertou – faltam vários anos para a missão chegar no objetivo e não é possível voltar para a hibernação, o que você faz? Acorda outras pessoas ou tenta viver sozinho por vários anos? Certamente é um dilema que pode conduzir para situações enlouquecedoras.

A causa dos problemas é a oportunidade perfeita para inserir um elemento dos Mitos. A nave pode ter sido abordada por Mi-go, Vampiros Estelares, Insetos de Shaggai ou Uma Cor Vinda do Espaço. Essas criaturas podem ter sido atraídas por um artefato que se encontra na nave, elas podiam estar num cometa que passou por perto, atravessaram o portal que permite as viagens mais rápidas que luz ou ainda podem ter infectado um dos tripulantes durante uma missão fora da nave.

Outra possibilidade é que a entidade alienígena não está na nave mas consegue exercer algum efeito à distância, tamanho é seu poder. Azathoth, Hastur, Nyarlathotep, Cthugha e Yog-Sothoth são alguns exemplos de entidades suficientemente poderosas para interferir nos dispositivos de uma nave ou mesmo afetar a mente dos investigadores, mesmo estando a milhões de quilômetros de distância.

Hal-9000

I’m sorry Dave. I’m afraid I can’t do that. | Fonte: Reprodução.

Uma outra ideia interessante é a IA que controla a nave ter enlouquecido. HAL-9000 é o exemplo mais óbvio, porém a IA Apollo de Alien Isolation é ainda mais assustadora, pois ela possui o controle sobre andróides de manutenção (os Joes trabalhadores) que se tornam armas mortais, dado sua força e resistência sobre-humanas. Pode ser que a IA esteja simplesmente tentando se livrar de um organismo alienígena na nave, executado indiscriminadamente rotinas de quarentena e “esterilização”. Ou ela pode realmente estar agindo de forma errática em função de algum erro na sua programação.

Na monografia Cthulhu Once Men é considerada a possibilidade das IAs, robôs e andróides enlouquecerem como os investigadores, devido à exposição a uma criatura dos Mitos. Teoricamente entidades extremamente caóticas estariam além da possibilidade de processamento e compreensão de uma IA, fazendo com que o seu código seja corrompido e ela comece a se comportar como uma pessoa que perdeu sua sanidade. Nesse suplemento inclusive existem regras para “sanidade” das máquinas, que são medidas através de pontos de “estabilidade”ou “integridade”.

Até agora só falamos de naves, porém todas as ideias discutidas até aqui se aplicam com poucos ajustes em situações equivalentes onde os investigadores estão numa estação espacial ou numa colônia em um planeta/asteróide distante (que pode até mesmo ser Marte, dependendo do nível tecnológico do cenário). Nesse caso a fonte de caos pode estar escondida no planeta, ter caído com um meteoro ou ainda ter sido trazida em uma nave.

Audaciosamente indo onde nenhum investigador jamais esteve

Outra abordagem é aquela onde o cenário se inicia com os personagens sendo preparados para uma missão de resgate ou exploração em algum local remoto. Nesse caso, a nave deles não sofrerá nenhum infortúnio (pelo menos no começo) e eles devem conseguir realizar uma viagem até o seu destino insólito sem nenhum grande problema. Se o guardião quiser antecipar um clima de tensão ele pode fazer com que os investigadores sofram de pesadelos ou ainda que ocorram pequenos problemas na nave (nesse caso pode ser que os investigadores não consigam distinguir se estão fazendo uma viagem normal ou se  estão num cenário do tipo “Houston, temos um problema”).

Europa Report

Europa Report é um filme típico de isolamento e paranóia no espaço. | Fonte: IMDB

A missão dos investigadores pode ter sido passada através de um “briefing” na Terra, caso em que eles poderão se preparar com antecedência. Mas pode ser que eles estejam em alguma missão de rotina (transporte de suprimentos, por exemplo) e recebem um sinal de socorro ou um sinal estranho e se vêem obrigados a investigar esse sinal, seja por conta de um código de ética de exploradores espaciais ou por determinação contratual da companhia para a qual eles trabalham.

Mas qual o objetivo da missão afinal? Alguns exemplos:

  • Uma nave desaparecida a vários anos reapareceu misteriosamente;
  • Fazem vários meses que perdeu-se o contato com uma colônia distante;
  • Foi recebido um pedido de socorro de uma nave à deriva / estação espacial;
  • O objetivo é explorar um novo mundo recém descoberto;
  • Foram descobertas misteriosas ruínas de uma civilização ancestral.

Qualquer que seja o objetivo, nesse tipo de cenário é importante construir um clima de tensão gradativo, onde os investigadores vão percebendo indícios perturbadores de que alguma coisa está errada. Tripulações completamente desaparecidas, marcas estranhas nas paredes, memória dos computadores apagada e barricadas nas portas são exemplos de coisas que vão mexer com os nervos dos jogadores sem revelar nada óbvio. Essa construção pode culminar com algum grande confronto com um terror dos Mitos ou pode simplesmente conduzir para uma espiral de loucura, pelo acúmulo de vários pequenos incidentes inexplicáveis.

No final, os investigadores poderão ter a possibilidade de fugir ou ter de confrontar a fonte de horror, caso seu meio de fuga tenha sido destruído / incapacitado. Se você planeja uma aventura “one-shot”, pode ser interessante dar como única saída um final heróico clássico, onde os investigadores se sacrificam com a explosão de um reator / colisão com uma estrela para evitar que um mal maior alcance a humanidade. A história Nas Montanhas da Loucura, embora se passe na Antártida, representa bem a estrutura desse tipo de cenário.

 

Robertson “Mantsor” Schitcoski

Robertson “Mantsor” é engenheiro de computação e mora em Brasília. Ingressou no mundo do RPG mestrando todo tipo de cenário em GURPS, que é o seu sistema de estimação. Hoje prefere Chamado de Cthulhu, que já lhe rendeu algumas das melhores experiências com o hobbie.