A história do D&D básico
Conheça a história por trás dos erros e acertos das diversas edições introdutórias do D&D.
Por: Mantsor | 09/05/2018
Houve uma época em que, para jogar e principalmente para mestrar RPG, era necessário ler um ou mais livros com centenas de páginas e uma infinidade de regras. Isso era comum principalmente antes da Era d20. GURPS, AD&D, Vampiro, Shadowrun e outros sistemas possuíam livros intimidadores para os iniciantes. A editora TSR / Wizards of the Coast (WotC) já havia percebido isso a muito tempo atrás e sempre tentou criar uma versão básica de seus jogos que fosse mais simples, rápida e bastante enxuta para atrair os novos jogadores – nenhum livro passava muito de 30 páginas. Você compra uma caixa que já vem com tudo que é necessário para começar a jogar: um livreto para o mestre, outro para os jogadores, uma aventura pronta com alguns personagens, um mapa e um conjunto de dados.
Os kits introdutórios
Essa receita se consolidou com a segunda edição do AD&D, através do conjunto introdutório First Quest, que foi lançado no Brasil em 1995 pela Editora Abril. Além do kit básico, ele incluía também um CD de áudio com sons e narrativas para acompanhar a aventura introdutória, miniaturas plásticas e fichas ilustrativas. Esses acessórios eram bastante inovadores na época, mas acabaram sendo abandonados nas edições seguintes. A principal limitação de regras que caracterizou essa edição e as seguintes era que os personagens só podiam chegar até o 3º nível – como resultado isso sempre reduziu bastante as tabelas de progressão, listas de magias, listas de itens mágicos e listas de monstros.
Em 1999 a WotC (ainda sob o selo TSR), provavelmente com o objetivo de preencher uma “lacuna” de falta de novos produtos, decide lançar o “Dungeons and Dragons Adventure Game”, que seguia a receita tradicional de simplificação. Ele era composto por 3 aventuras, para personagens prontos de níveis 2, 3 e 4, com a possibilidade de evolução até o 5º nível. A grande limitação é que ele não possuía regras para os jogadores criarem seus próprios personagens. Foi um dos últimos produtos lançado para o AD&D.
Em 2000, na terceira edição do D&D, tivemos o retorno do conjunto introdutório “D&D Adventure Game”. Ainda que tivesse regras mais detalhadas para a criação de personagens, eles estavam restritos ao 3º nível, como no First Quest. Ele também procurava se aproximar mais de um jogo de tabuleiro, limitado a exploração de masmorras, como o jogo HeroQuest (lançado aqui pela Estrela). Com o lançamento da edição 3.5, em 2004, surgiu também um novo “jogo de tabuleiro”, ainda mais simplificado (permitia os personagens atingirem somente o 2º nível), chamado “Dungeons and Dragons Basic Game”. Ainda que tenha sofrido uma revisão em 2006, nenhum desses jogos chegou a fazer muito sucesso e tampouco foram lançados no Brasil.
Já com a quarta edição foi recriado o estilo clássico da famosa caixa vermelha de 1983 (sobre a qual falaremos mais adiante), com um kit introdutório tradicional. Foi lançado no Brasil pela Editora Devir em 2011. Ele foi o primeiro de uma linha de livros conhecida como “Essenciais”, que tinha como objetivo facilitar a introdução de novos jogadores e mestres, eliminando a trindade sagrada de livros básicos do D&D (Livro do Jogador, Livro do Mestre e Livro dos Monstros). Foi outra iniciativa audaz mas que também não deu muito certo …
Até que tivemos o lançamento da quinta edição em 2014, que entre vários acertos também teve um dos melhores módulos introdutórios, o “Starter Set” de 2015, além de disponibilizar gratuitamente as regras básicas em PDF, conforme vimos neste artigo. Como tinha o suporte das regras básicas gratuitas, a sua aventura introdutória não se limitou ao 3º nível, permitindo um melhor desenvolvimento da história e a evolução dos personagens até o 5º nível. Por conta disso, essa aventura (Lost Mine of Phandelver) é amplamente utilizada até mesmo por mestres experientes como introdução para suas campanhas.
Como pudemos ver, os kits introdutórios sempre deixaram um pouco a desejar pelo fato de limitarem a evolução dos personagens, não permitindo que os mestres e jogadores pudessem realmente experimentar a parte mais interessante dos sistemas. A disponibilização das regras gratuitas ajudou na popularização da quinta edição, porém não é exatamente muito amigável para novos jogadores, pois são dois PDFs, um com 114 páginas (Regras Básicas do Jogador) e o outro com 67 páginas (Regras Básicas do Mestre). Mas nem sempre foi assim…
Um D&D nem tão básico
Em 1977 (época da primeira edição do AD&D) Eric Holmes criou uma versão introdutória chamada de “Basic” D&D, que vinha numa caixa azul e tinha todo o necessário para se jogar em pouco mais de 50 páginas. Surgiu aí a limitação do 3º nível dos kits introdutórios e também a simplificação do conjunto classes/raças, onde elfos, anões e halflings eram considerados “classes” e não existia o conceito de raças. A ideia dessa versão era ser uma porta de entrada para o AD&D, que era inclusive citado como referência para que os jogadores pudessem continuar evoluindo seus personagens. Até então, algo parecido com o que viria a ser o First Quest.
Porém, em 1981 Tom Moldvay revisou o “Basic” D&D, criando o que seria praticamente um novo jogo, paralelo ao AD&D, do qual ele se distanciou cada vez mais. Era a primeira “caixa vermelha”, que viria a popularizar realmente o jogo. O D&D da Grow, lançado no Brasil nos anos 90, foi baseado nessa edição do jogo. A aventura introdutória que vinha nessa caixa era a “B2 – Keep on the Borderlands”, considerada por muitos como uma das melhores aventuras de D&D de todos os tempos. A editora Redbox chegou a lançar uma adaptação para Old Dragon dessa aventura, intitulada “Forte das Terras Marginais”.
David “Zeb” Cook (autor da segunda edição do AD&D) lançou logo em seguida uma edição “Expert”, que permitia os personagens irem do nível 4 ao 14. A qualidade gráfica dessas edições melhorou bastante, pois não só texto era de uma clareza e elegância impressionantes como as ilustrações também eram bastante inspiradoras. Os dois livros em conjunto (Basic e Expert) formaram o que viria a ser conhecido como B/X D&D.
Já em 1983 Frank Mentzer fez uma nova revisão do Basic D&D, dividindo o livro em “Players Manual” e “Dungeon Masters Rulebook” e lançando uma nova “caixa vermelha”, com a incrível ilustração de um dragão vermelho, de Larry Elmore. Mentzer continuou nos anos seguintes expandindo as regras desta edição com a “caixa azul” (Expert Rules – do nível 4 ao 14), a “caixa verde” (Companion Rules – do nível 15 ao 25), a “caixa preta” (Master Rules – do nível 26 ao 36) e a “caixa dourada” (Immortal Rules – para personagens além do 36º nível). Ficou claro assim que esse D&D já não era mais “básico” mas também não tinha mais relação nenhuma com o AD&D. Essa edição ficou assim conhecida com BECMI D&D.
A Rules Cyclopedia
Em 1991 Aaron Allston fez então uma compilação do BECMI D&D em um único livro, a Rules Cyclopedia. Embora as regras permitissem a evolução dos personagens até o 36º nível, elas ainda mantinham a simplicidade e elegância da edição de 1981. Em pouco mais de 300 páginas, esse livro reuniu todo o necessário para criar e jogar infindáveis aventuras, sem a necessidade de nenhum suplemento. Se formos observar somente as regras de criação de personagens, elas ocupam apenas 81 páginas. A título de comparação, o Livro do Jogador do D&D 5ed possui 320 páginas.
Até hoje muitos consideram o Rules Cyclopedia a edição definitiva do D&D. Ele serve perfeitamente como um RPG introdutório mas permite também jogos com regras mais avançadas, com uma modularidade da qual o D&D só viria a se aproximar novamente com a quinta edição. Além disso, ele é a síntese do estilo de RPG Old School, sobre o qual falamos aqui.
Mas quais as principais diferenças entre as regras da Rules Cyclopedia e o AD&D 2e? Vejamos:
- Os atributos são os mesmos 6 tradicionais (STR, DEX, CON, INT, WIS, CHA), porém são rolados apenas com 3d6, o que acaba resultando geralmente em valores mais baixos;
- Não existe separação entre raças e classes, o que resulta nas seguintes classes: Fighter, Magic-User, Cleric, Thief, Dwarf, Elf, Halfling. Além disso, temos duas classes opcionais: a Druid (evoluído a partir de um clérigo neutro de 9º nível) e a Mystic (espécie de monge, que possui alguns poderes mais “apelativos”);
- Os alinhamentos são apenas 3: leal, caótico e neutro;
- As regras de combate são mais simples;
- As magias e os itens mágicos são mais simples;
- Os personagens podem evoluir até o 36º nível, ao contrário do AD&D, que geralmente limita os personagens ao 20º nível;
- E finalmente existem regras para domínios, combates em massa e cercos, como parte das regras básicas.
Com a força que o movimento OSR (Old School Renaissance – Renascença da Velha Escola) ganhou nos últimos anos, sobretudo com os chamados “retro-clones”, a WotC resolveu ano passado lançar a Rules Cyclopedia novamente no site DriveThruRPG, onde podemos adquirir o PDF por módicos US$ 9,99. Se você quiser conhecer um pouco o sistema sem fazer nenhum investimento existe o retro-clone Dark Dungeons que recria basicamente as mesmas regras utilizando uma “linguagem” mais atual. Ainda assim recomendo fortemente a aquisição do D&D RC, pois considero um livro essencial para os fãs de D&D.
E finalmente, como um bônus especial, disponibilizamos uma ficha de personagens para a Rules Cyclopedia, no melhor estilo clássico, em português e editável, para incentivar os mestres a experimentarem esse incrível jogo em suas próximas sessões.
Robertson “Mantsor” Schitcoski
Robertson “Mantsor” é engenheiro de computação e mora em Brasília. Ingressou no mundo do RPG mestrando todo tipo de cenário em GURPS, que é o seu sistema de estimação. Hoje prefere Chamado de Cthulhu, que já lhe rendeu algumas das melhores experiências com o hobbie.