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Espada e Magia | Dicas

Como criar uma masmorra realista

Construa masmorras coerentes e realistas com essas dicas. Dê um novo significado a palavra exploração.


Por: Mantsor | 26/07/2017

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Este é o primeiro de uma série de artigos “Como criar..”, que tem como objetivo ajudar o mestre, narrador ou guardião a criar elementos para enriquecer suas aventuras. Pode ser algum desafio, recurso narrativo, item, antagonista ou mesmo a estrutura de uma aventura. A ideia é tentar expandir os conceitos básicos que encontramos nos livros de regras, adicionando características e detalhes além dos clichês tradicionais.

No artigo de hoje vamos falar de um dos elementos mais clássicos do RPG, que surgiu nos primórdios do jogo e está presente até hoje: é a boa e velha masmorra.

As mais clássicas aventuras de D&D se desenrolaram em torno de masmorras: Tomb of Horrors, Temple of Elemental Evil, White Plume Mountain e Ravenloft são alguns bons exemplos. Além disso, não podemos nos esquecer de uma das maiores masmorras já publicadas: Undermountain – um complexo labiríntico que se estende por pelo menos nove níveis no subterrâneo da cidade de Waterdeep, em Forgotten Realms.

Todas essas masmorras possuem uma característica em comum, presente na maior parte desse tipo de aventuras, não só no D&D, que é o fato delas serem, em maior ou menor grau, inverossímeis. Mas que diabos significa isso, você deve estar se perguntando. Significa que elas não se parecem nem um pouco com uma construção que possuiria alguma utilidade no mundo real. Elas são geralmente labirínticas, com caminhos que não levam a lugar algum, com salas aparentemente sem nenhuma utilidade  e em alguns casos habitadas por uma miríade de criaturas que parecem simplesmente estar aguardando aventureiros incautos e não possuem nenhuma fonte de água, alimentos ou sequer uma rotina que faça sentido. Às vezes até a existência da masmorra não tem um propósito específico, como se ela fosse apenas um aglomerado de encontros aleatórios.

Templo do Mal Elemental | Fonte: Dungeons & Dragons

Contudo, esse tipo de cenário não é necessariamente ruim para um jogo de RPG. Explorar o Templo do Mal Elemental pode ser uma experiência bastante divertida, sobretudo se o mestre se esforçar em manter os jogadores atentos e curiosos sobre o que irão encontrar atrás da próxima porta. Porém, em algum momento, mesmo os maiores entusiastas da exploração acabam enjoando desses ambientes.

Como não há uma lógica aparente por trás dessas masmorras, os jogadores não têm oportunidade de testarem estratégias mais elaboradas, como tentar envenenar a fonte de água dos guardas, derrubar uma parede que obviamente ajudaria a encurtar um caminho, tentar se infiltrar numa fortaleza pela “saída de emergência”, entre outras. Trata-se simplesmente de ir de uma sala até a outra, matando tudo que há no caminho, na expectativa de chegar em algum momento na sala do tesouro (para os mais afortunados) ou numa armadilha mortal (caso o mestre seja mais sádico). Enfim, em quantas aventuras de exploração de masmorra você já viu os jogadores se prepararem para a aventura tentando descobrir a planta do lugar, estudando a rotina dos guardas, o fluxo de suprimentos ou procurando por pontos vulneráveis?

Mas o nosso objetivo aqui não é demolir as nossas queridas masmorras aleatórias e sim tentar construir uma que seja realmente crível e incentive os jogadores a procurarem soluções alternativas para os desafios que ela impõe. Sendo assim, vamos ver a seguir alguns pontos que são importantes para o planejamento da sua masmorra realista. É claro que você não precisa seguir todas as sugestões ao pé da letra. Escolha aqueles tópicos que mais lhe interessem, aplique-os, adapte-os ou apenas use-os como inspiração para suas próprias ideias! Uma masmorra realista deve ter…

Um propósito

Parece óbvio, mas não raramente a masmorra é inserida numa aventura somente como um obstáculo a ser vencido e não possui nenhum finalidade ou coerência com o cenário onde ela se encontra. O propósito de uma masmorra é o ponto de partida de onde você definirá diversas outras características, como estrutura, ecologia e localização. Não pense no propósito como a justificativa para a masmorra estar na sua aventura – você deve pensar na justificativa para ela estar no seu cenário e só então pensar no elemento que fará com que os aventureiros a explorem.

Um exemplo: na sua aventura os jogadores terão de confrontar um poderoso mago necromante para cumprir sua missão. É muito tentador simplesmente escolher um local sinistro (como um pântano) e colocar o necromante comandando uma legião de mortos vivos que infestam uma ruína nesse local.

Porém, essa ideia pode não ter conexão nenhuma com o cenário. Por que o necromante iria se esconder num local de difícil acesso (não só para os aventureiros mas também para ele sair de lá) e que está caindo aos pedaços? As coisas podem ficar mais interessantes se você imaginar que esse necromante na verdade é o conselheiro de um reino decadente, que vem sendo assolado por pragas, onde as tumbas dos cemitérios são violadas na madrugada.

O seu refúgio é o próprio castelo real, que está bem protegido por soldados. Ninguém acreditará que o pobre velhinho, conselheiro do rei, na verdade é um poderoso mago. Sendo assim, ninguém tem motivos também para desconfiar de que ele conduz experimentos funestos no calabouço do castelo.Pronto – agora você tem uma masmorra (o castelo) que faz muito mais sentido do que aquela ruína abandonada no meio de um pântano.

Vejamos dois exemplos de propósitos e suas características mais comuns:

Templo: o local de adoração / sacrifício para uma ou mais divindades. Templos normalmente possuem grandes salões dedicados para oração, estátuas, relíquias e outros objetos sagrados. Geralmente não possuem uma guarda significativa, a menos que haja um tesouro que valha o custo para protegê-lo ou exista alguma hostilidade contra a divindade por algum grupo das imediações. Os templos costumam se situar em locais de grande trânsito de pessoas, seja ao largo de uma estrada ou no centro de uma cidade. Se o templo for isolado, provavelmente terá uma justificativa, como por exemplo, estar localizado em um terreno sagrado.

Fortaleza: qualquer construção fortificada, que pode ir desde um pequeno forte de madeira até um imponente castelo de pedras. Estoques de suprimentos, armas, ferreiros e estábulos são elementos praticamente obrigatórios. Ela sempre possuirá uma guarnição defensiva e eventualmente também poderá abrigar exércitos, com o objetivo de defender uma área ou um caminho contra invasores. Pode também ser a sede administrativa de uma região, como o palácio de um rei ou o castelo de um senhor feudal (nesse caso provavelmente teremos também uma sala do tesouro). Normalmente está localizado em uma posição estratégica no terreno, que dificulta o acesso e favorece a defesa (no alto de uma montanha, isolado por um fosso, etc).

Castelo – a masmorra mais recorrente | Fonte: Pinterest

Como podemos ver, a ideia do propósito é definir a utilidade da masmorra e daí derivar o tipo de construção, o tipo de salas que ela possuirá, os seus habitantes e a sua localização. Outros exemplos de propósitos seriam um posto avançado, uma escola arcana, um covil de bandidos, uma  prisão ou simplesmente uma moradia.

Uma ecologia sustentável

Quando vamos povoar uma masmorra com monstros, animais e humanóides é tentador criar um verdadeiro circo dos horrores, com cada sala contendo um ou mais exemplares de uma diferente criatura exótica. O problema é que, a menos que a masmorra realmente seja uma espécie de zoológico, isso não fará sentido por diversos motivos. O que impede que essas criaturas vaguem pela masmorra atacando umas as outras? (golens de ferro x monstros da ferrugem) Onde elas conseguem alimentos? (um dragão consome uma quantidade considerável de carne por dia, animais herbívoros precisam de vegetais frescos, etc) Como eles chegaram lá? (um tarrasque numa caverna cuja única entrada é uma porta de 2 metros – ele foi teleportado para dentro?) Qual a motivação dos humanóides? (por que uma tribo de orcs estaria habitando uma caverna úmida infestada de fungos venenosos?).

Assim como vimos anteriormente que uma masmorra deve ter uma razão para existir, seus habitantes também devem ter um motivo para habitar a masmorra. Humanóides (orcs, anões, goblins, kobolds, elfos, humanos, etc) podem prestar algum serviço para um mestre (mago, sumo sacerdote, senhor de terras, chefe de guilda, etc), seja guardando a masmorra ou garantindo sua manutenção. Eles também podem estar presos contra sua vontade (escravos ou prisioneiros). Outra opção ainda seria que eles não moram na masmorra  e estão apenas de passagem – peregrinos em um templo, viajantes numa estalagem, alunos numa escola, ladrões numa guilda, etc.

Já no caso de monstros e animais, a coisa fica mais simples. A masmorra pode ser seu habitat natural (morcegos numa caverna, esqueletos numa tumba, elementais num vulcão, etc) ou eles podem ter sido trazidos para cumprir algum objetivo específico, como proteção, material para experimentos ou simplesmente para fazerem parte de uma coleção. Uma possibilidade também é que eles foram parar na masmorra por acidente, como por exemplo, fantasmas numa casa assombrada e insetos numa biblioteca.

Um questão que deve ser considerada quando possuímos habitantes de diferentes espécies, é como eles interagem entre si, de uma maneira que não exterminem uns aos outros. A solução mais simples é o isolamento físico entre os diferentes habitats da masmorra: portas, alçapões, grades, barreiras mágicas, poços e toda sorte de obstáculo podem ser suficientes para separar diferentes espécies de criaturas. Porém, se forem criaturas inteligentes ou que possuem alguma habilidade que permita elas ultrapassarem obstáculos, é necessária uma justificativa alternativa. Nesse caso as criaturas podem ter uma relação de convivência forçada: criaturas mais fortes e inteligentes podem dominar ou escravizar criaturas mais fracas. Ou a relação pode ser ainda cooperativa – os ogros protegem a acesso norte do complexo de cavernas, enquanto que os orcs protegem o acesso sul – e ambos se toleram mutuamente.

No caso de humanóides inteligentes e organizados, é possível ainda existir uma hierarquia entre os indivíduos ou até mesmo uma sociedade com diversas espécies em convívio pacífico. E todas essas opções podem ainda existir ao mesmo tempo se a masmorra for suficientemente grande e/ou complexa.

Gnols e demônios – isso não vai dar certo … | Fonte: Pinterest

Agora que vimos algumas opções para povoar nossa masmorra, o passo seguinte é pensar em como seus habitantes sobrevivem. Para garantir sua sobrevivência, a masmorra deverá possuir alguma fonte de suprimentos (um despensa e cozinha,  por exemplo), que pode ser abastecida a partir do mundo exterior (mercadores podem trazer os suprimentos) ou mantida por meios próprios (plantações, criações de animais ou até mesmo geradas magicamente). Lembre-se também que uma fonte de água é muito importante, pois mesmo os monstros precisam de alguma quantidade de água para sobreviver.

Uma estrutura funcional

Geralmente quando pensamos em uma masmorra de RPG, sobretudo num mundo fantástico de Dungeons & Dragons, logo imaginamos algo muito parecido com um labirinto. Seja um castelo, uma caverna ou mesmo uma floresta densa, é comum imaginar que a masmorra apresentará uma dificuldade para ser transposta pelo simples fato de não existir um caminho óbvio que leve à sala do trono, sala do tesouro ou a qualquer outro ponto de interesse para os aventureiros.

Se o objetivo da masmorra for simplesmente esconder um artefato mágico, aprisionar uma princesa ou dificultar o acesso a qualquer outro item valioso, um labirinto cheio de armadilhas e caminhos sem saída é uma opção interessante. Segundo a mitologia grega, o Palácio de Knossos teria sido construído propositalmente com um intrincada arquitetura para aprisionar o mítico Minotauro (daí a lenda do labirinto de Creta). Porém, para qualquer propósito mais sofisticado – sobretudo se tivermos criaturas que morem e trabalhem lá  –  a sua masmorra necessitará de uma estrutura que seja mais prática e funcional.

Ter uma estrutura funcional significa que a masmorra foi planejada de modo que todas as salas tenham um objetivo específico. Além disso, as conexões entre elas visam encurtar os caminhos e geralmente facilitar os acessos. É claro que ainda podem existir salas secretas e armadilhas no meio do caminho, porém esses locais serão exceção e não regra. Criaturas que precisam se deslocar frequentemente do alojamento para o refeitório e depois seguir para seu posto de guarda dificilmente ficariam perambulando por corredores intermináveis sob o risco de morrerem no meio do caminho, vítimas de suas próprias armadilhas.

Então como faço para planejar minha masmorra? Existem dois possíveis caminhos. A primeira opção é tomar como base o mapa de um local real. Pode ser um mosteiro, palácio ou qualquer outra construção que tenha um propósito idêntico ao que você necessita. Inclusive, ele não precisa ser necessariamente de uma construção histórica. A planta  de um restaurante moderno pode ser perfeitamente adaptada para ser a sua taberna medieval: em ambos os casos você terá um salão principal, cozinha, despensa e sala dos empregados. Você pode atribuir aos cômodos uma utilidade idêntica a original ou adaptar de acordo com suas necessidades. Por exemplo: um castelo histórico provavelmente não terá uma estúdio do mago – nesse caso você pode reservar a biblioteca ou a capela com esse objetivo.

Tudo bem, mas onde consigo mapas ou plantas de construções reais? Se você pesquisar, por exemplo, por imagens de  “castle floor plans”, “temple floor plans” ou outras opções do tipo “xyz floor plans”, ficará surpreso com a grande quantidade de mapas que encontrará. Dois exemplos que considero particularmente interessantes são as plantas do Castelo de Neuschwanstein, na Baviera (Alemanha) e do Templo de Amon-Rá, em Karnak (Egito).

A outra opção, caso você disponha de mais tempo e de uma boa dose de criatividade, é mapear a sua própria masmorra do zero ou tomar alguma existente como inspiração. Vamos ver a seguir um exemplo de receita rápida para criar uma masmorra. Partindo do princípio que você já sabe o propósito de sua masmorra e quais serão seus habitantes, a idéia é fazer primeiro uma lista das principais “áreas” que você vai precisar (área defensiva, área de adoração, área de habitação, área de estudos, etc). Cada área pode ser composta por uma ou mais salas, que devem a princípio estar próximas entre si e bem conectadas. Vejamos, por exemplo, o que poderia compor uma área defensiva num castelo: corredores com seteiras ao longo de todo o perímetro, guaritas em pontos estratégicos e de boa visibilidade, uma sala do comandante da guarda e um depósito de armamentos.

Uma vez definidas quais áreas irão compor sua masmorra, o passo seguinte é listar quais salas, caminhos ou ambientes irão fazer parte delas, como no exemplo acima. Para cada um dos componentes da área definimos então quais criaturas e itens geralmente podem ser encontrados ali. Seguindo o exemplo de nossa área defensiva, é bem óbvio imaginar que teremos uma patrulha de soldados circulando pelo perímetro dia e noite e que no depósito de armamentos poderemos encontrar todas sorte de item bélico, tais como espadas, escudos, lanças, fundas, piche, etc. Você não precisa detalhar muito agora – a idéia é montar um panorama geral de coisas / criaturas que você poderá encontrar.

O passo final antes de rascunhar o seu mapa é definir como as áreas estão conectadas. Esses serão os pontos chaves que permitirão visitantes / intrusos percorrer todas sua masmorra. Você pode fazer um diagrama, representando cada área por um círculo e os acessos entre elas por uma linha ligando os círculos. Aqui você aproveita para anotar informações importante sobre esses pontos de acesso: ele é bloqueado por uma porta trancada? Está guardado por sentinelas? É uma passagem oculta?  Ou é simplesmente um corredor vazio?

De posse dessas informações, você pode partir então para o desenho de sua masmorra. Não vamos aqui detalhar esse processo, mas a ideia geral é expandir o diagrama criado anteriormente, distribuindo as salas necessárias e dando um formato adequado ao conjunto, que reflita o tipo de estrutura que você imaginou. Nesse momento, olhar uma masmorra existente pode lhe ajudar a dar uma noção de distribuição de espaço e de como conectar melhor suas salas.

Finalizado o desenho, agora você poderá partir para detalhar e descrever cada sala, definindo estatísticas de criaturas e itens importantes que poderão ser encontrados. Lembre-se que dificilmente uma criatura ficará sempre parada numa mesma sala (a menos é claro que ela esteja aprisionada). Imagine que ao longo do tempo “eventos” poderão ocorrer dentro da masmorra: guardas trocam de posto, clérigos executam rituais em determinados horários e praticamente todo tipo de criatura irá em algum momento se alimentar ou dormir.

Enfim, o segredo é imaginar sua masmorra como algo que está vivo e funcionando para um propósito prático e não é uma simples coleção estática de encontros aleatórios que são acionados somente quando os aventureiros entram em cada sala.

Robertson “Mantsor” Schitcoski

Robertson “Mantsor” é engenheiro de computação e mora em Brasília. Ingressou no mundo do RPG mestrando todo tipo de cenário em GURPS, que é o seu sistema de estimação. Hoje prefere Chamado de Cthulhu, que já lhe rendeu algumas das melhores experiências com o hobbie.