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Os personagens morreram, e agora?

Como utilizar a morte dos personagens para dar uma reviravolta na sua aventura.


Por: Mantsor | 02/11/2017

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Superando o Bloqueio Criativo no RPG

Aproveitando que hoje é o Dia dos Mortos (também conhecido como Dia de Finados, para os católicos, ou Día de Los Muertos, para os Mexicanos) vamos abordar um tema que literalmente assombra muitas mesas de RPG – o que fazer quando um ou mais personagens dos jogadores morrem?

Muitos jogadores, principalmente em campanhas longas, acabam se apegando aos seus personagens e realmente temem que eles morram, seja em combate, acidentalmente ou pelo capricho de um mestre mais sádico. E mesmo os mestres, em muitos casos realmente se esforçam para manter os personagens vivos, seja para manter a coesão do grupo de jogo ou para que eles possam cumprir algum objetivo na aventura. De qualquer maneira, seja pelo azar numa jogada de dados ou pela audácia / estupidez de um jogador, o mestre pode acabar num dilema de como tratar a morte dos personagens. Criar um novo personagem? Entregar um personagem do mestre para o jogador azarado? Determinar que uma intervenção divina ressuscitou o personagem?

Em cenários fantásticos / tecnológicos, a morte de um personagem pode se tornar o gancho para uma nova missão, onde os demais personagens devem agora procurar algo como um clérigo ou um aparato tecnológico que seja capaz de ressuscitar o personagem. Mas o que fazer se no cenário de jogo não existir essa possibilidade? E pior ainda, e se todos os personagens tiverem um fim trágico?

A morte dos personagens não precisa significar que a aventura acabou. | Fonte: Pinterest

A proposta aqui é permitir que os jogadores continuem jogando com seus personagens originais ou pelo menos com uma versão adaptada deles, interpretando efetivamente um pós-vida. Obviamente já existem diversos jogos que partem justamente da premissa que os personagens eram humanos normais que morreram e se tornaram alguma espécie de monstro – seja um vampiro, fantasma, múmia, zumbi ou qualquer outro morto-vivo da sua preferência (lugar comum principalmente no Mundo das Trevas da White Wolf). Nesses jogos a morte do personagem pode nem ser narrada, pois os jogadores muitas vezes  já criam seus personagens como mortos-vivos. Assim, não há nenhuma surpresa, pois é algo natural do jogo.

As coisas podem realmente começar a ficar interessantes se os jogadores não souberem o que vai acontecer se os seus personagens morrerem e principalmente se eles não esperarem que isso aconteça. Imagine uma aventura de D&D ou de Chamado de Cthulhu. Numa aventura dessas os personagens vão sempre procurar lutar para sobreviver, seja se equipando com itens que melhorem suas chances ou mesmo evitando combates e situações de risco. Se o mestre se preparar para uma possível morte dos personagens, ou melhor ainda, se ele se planejar para isso acontecer com certeza, ele pode ter a chance de criar uma aventura que seja mais surpreendente, memorável e talvez até mais assustadora do que uma aventura de terror convencional.

Para transformar o pós-vida numa experiência inusitada para os jogadores, é fundamental que o mestre dê o mínimo possível de dicas do que está acontecendo. Deixe os jogadores no escuro – faça eles acreditarem que ainda estão vivos, sonhando, sob o efeito de alucinógenos, experimentando uma viagem psíquica, imersos em uma realidade virtual, presos numa armadilha mágica  – o importante é que eles se sintam desorientados, inseguros e não saibam exatamente onde estão ou o que aconteceu. Quando os jogadores acharem que estão seguros, faça eles se depararem com a terrível verdade. De preferência de uma maneira chocante e inesperada. Dois filmes que apresentam muito bem esse tipo de situação são O Sexto Sentido (1999) e Os Outros (2001).

Vamos ver agora alguns exemplos de cenários que podem garantir uma nova “vida” para os personagens que morreram …

Vampiros – que jogador de RPG nunca quis jogar com essas criaturas? | Fonte: Reprodução

Morto-vivo, a solução clássica

Tudo bem, acabamos de falar que a ideia é fazer uma transição para o pós-vida que seja inesperada para o jogador. Se essa transição for ele simplesmente acordar dentro de um caixão sabendo que é um morto-vivo, não será algo muito surpreendente. Nesse caso o mestre terá de se esforçar um pouco mais para esconder a condição do personagem e criar um impacto. Se a aventura utilizar um sistema que tipicamente não possui personagens morto-vivos ou monstros, isso já facilita um pouco.

Imagine, por exemplo, um guerreiro de D&D que é ferido mortalmente em combate. Seu corpo é transportado pelos seus companheiros e quando eles estão atravessando uma floresta misteriosa ele repentinamente desperta! Num primeiro momento os jogadores provavelmente vão acreditar que ele ressuscitou, devido a alguma influência mágica ou divina. Porém, com o passar dos dias, todos começam a achar estranho o seu grande apetite por carne crua e a sensibilidade à luz do sol… Ou pior ainda, o próprio guerreiro não entende porque ninguém conversa com ele e todos parecem ignorar sua presença!

Outra maneira de confundir os jogadores é disfarçar a própria morte do personagem. Levar uma espadada no peito é algo que geralmente não deixará dúvidas de que o personagem morreu. Porém se ele está usando aquele anel mágico misterioso, que parece mais pesado a cada dia, vai deixando o personagem com um aspecto cadavérico com o passar do tempo e ainda induz a sonhos estranhos onde uma voz misteriosa dá ordens para o personagem, ele poderá nem se dar conta do dia em que efetivamente o personagem morreu e se tornou servo de alguma entidade abominável.

Com certeza esse cara não está levando você para uma colônia de férias | Fonte: Pinterest

O reino dos mortos

Inferno, Hel, Submundo, Valhalla, Éden, Arkádia, não importa o lugar. O personagem morreu e seu corpo foi estraçalhado, carbonizado ou obliterado de alguma outra maneira. A sua alma / espírito / essência está agora vagando por algum outro reino metafísico e não existe chance de ele retornar para o plano material.

Dependendo da similaridade desse reino metafísico com o plano material, o personagem pode também levar algum tempo até descobrir que ele está realmente morto, principalmente se ele estiver junto de todos seu companheiros. Nesse tipo de cenário existe a interessante possibilidade do personagem se tornar algum tipo de criatura espiritual, que pode inclusive ganhar a habilidade de se materializar temporariamente no seu plano nativo.

Aqui a imaginação é o limite. Os exemplos mais comuns são dos personagens que se tornam anjos ou demônios, adquirem grandes poderes e agora tem de se preocupar com intrigas celestiais / infernais. Dois bons RPGs de referência para esse tipo de cenário são Anjos: A Cidade de Prata e Demônios: A Divina Comédia, ambos da Editora Daemon. O livro A Batalha do Apocalipse, de Eduardo Spohr, também serve como uma ótima inspiração para mestres que pretendem narrar aventuras em planos alternativos.

Cópia cerebral – Enganando a Morte 2.0 | Fonte: Reprodução

O fantasma na máquina

Se o cenário for de ficção científica, existe a possibilidade dos personagens se tornarem virtualmente imortais. Mesmo que o corpo morra, o seu espírito / consciência / fantasma pode ser eventualmente copiado e armazenado em um equipamento ou na rede. Dessa maneira ele pode continuar a existir indefinidamente num mundo virtual ou pode ainda ser “instalado” em um novo corpo cibernético. Aqui também podem surgir dilemas filosóficos: essa cópia é equivalente a pessoa original? Se forem criadas várias cópias, qual delas possui os direitos da pessoa original? Apagar uma cópia seria considerado crime de assassinato?

Dependendo da abordagem do mestre, esse tipo de procedimento pode ser trivial e bem conhecido, pode ser misterioso e restrito e pode ser até mesmo completamente desconhecido pelos jogadores e uma experiência verdadeiramente traumática e assustadora. Qualquer que seja a abordagem, podemos sempre  ter o problema de cópias defeituosas (partes da memória corrompida, alterações de personalidade, habilidades incompletas, etc) – enfim, o resultado pode ser que o personagem “ressuscitado” pode ter adquirido toda sorte de problema psicológico: ele pode estar mudo, sofrer de amnésia, ter adquirido manias estranhas e até mesmo ter se tornado psicótico. Existe ainda a possibilidade de ele ser hackeado, para obedecer instruções específicas ou ter suas memórias substituídas.

Caso seja uma prática comum no cenário, provavelmente será segura e não estará condicionada à morte do corpo original. As pessoas podem até criar cópias de segurança de suas mentes, para o caso de acidentes. Nesse caso a morte não é algo significativo e a temática da aventura será possivelmente uma ficção científica tradicional.

Por outro lado, se esse processo de cópia mental for de alguma maneira arriscado ou envolver procedimentos obscuros e duvidosos, então teremos uma tônica mais próxima do horror. Imagine se uma pessoa for copiada sem seu consentimento, para ser eternamente escravizada ou torturada? Ou ainda ficar presa num dispositivo, sem ter nenhuma possibilidade de interagir com o mundo físico ou virtual. Num cenário desses, provavelmente os personagens vão preferir uma morte definitiva mais do que qualquer coisa. Assista ao episódio “White Christmas” da série Black Mirror e você entenderá de que tipo de horror estamos falando…

O Mundo Invertido | Fonte: Reprodução

Morto, só que não…

E por fim, o personagem pode estar morto para a maioria das pessoas e ainda assim estar vivo … em outra realidade! O personagem, por algum motivo, simplesmente deixa de existir na nossa realidade / dimensão / linha temporal. As justificativas aqui podem ser as mais diversas: o personagem pode ter sido sequestrado por alienígenas de outra dimensão, pode ter adentrado um portal mágico para outro plano, pode ter sido  jogado numa linha temporal alternativa como resultado de um problema com uma máquina do tempo ou pode ter sido até mesmo devorado por uma entidade extra-dimensional.

Em todos os casos, há dois elementos em comum: 1) a realidade paralela é de alguma maneira muito diferente da original – pode ser algo assustador, como uma versão decadente e abandonada de nosso mundo, provavelmente habitada por monstruosidades lovecraftianas; pode ser  algo mágico e fantástico, mas estranho para os personagens ou ainda pode ser uma linha temporal muito distante ou muito diferente da linha original; 2) retornar para a realidade original é algo extremamente difícil ou até mesmo impossível. Cabe ao mestre decidir se ele vai dar falsas esperanças aos jogadores ou realmente deixar clara essa questão (afinal, o Mestre dos Magos era um velhinho bem intencionado ou um maldito mentiroso?)

Além do clássico desenho Caverna do Dragão, hoje temos uma série de bastante sucesso que aborda essa questão de personagens presos em uma realidade distópica. Sim, estamos falando de Stranger Things. O jovem Will Byers passa praticamente toda a primeira temporada aprisionado no “Mundo Invertido”. Por conta disso, ele chega a ser dado como morto, ainda que os protagonistas tenham se esforçado para trazê-lo de volta para a nossa realidade.

Se você quiser utilizar a versão assustadora desse tipo de cenário, sem dúvida recomendo o RPG Chamado de Cthulhu, pois ele possui todas as ferramentas para narrar esse tipo de situação e ainda assim criar situações inesperadas, pois os jogadores de Cthulhu geralmente estão acostumados a enfrentar as criaturas dos Mythos na nossa realidade e não na delas!

Robertson “Mantsor” Schitcoski

Robertson “Mantsor” é engenheiro de computação e mora em Brasília. Ingressou no mundo do RPG mestrando todo tipo de cenário em GURPS, que é o seu sistema de estimação. Hoje prefere Chamado de Cthulhu, que já lhe rendeu algumas das melhores experiências com o hobbie.