Criando personagens de RPG com background
Criar um background para o seu personagem não precisa ser uma tarefa do outro mundo nem algo chato.
Por: Zamboman | 06/03/2020
Abro meu editor de texto e começo a digitar as primeiras palavras: “passado, família, relacionamentos, interesses”… Pausa. Apago tudo e começo novamente. “Kruvic nasceu pobre. Seus pais são uma lembrança borrada e distante”… Não, clichê demais. Outra tentativa, “A guilda era formada somente por membros que já haviam passado em algum tipo de teste, mas para Kruvic, esse seria o seu primeiro desafio. Estatura mais baixa que média, mancava levemente da perna esquerda, um acidente quando criança”… Desisto! Melhor começar com com a ficha e depois penso no resto.
Quem nunca passou por uma situação semelhante, que atire o primeiro dado! Pode não parecer, mas para alguns jogadores, escrever um background para o seu personagem pode ser mais desafiador do que enfrentar o chefe final na última parte de uma campanha. Porém, fique sabendo que você não está sozinho(a) nessa jornada.
Background pra quê?
A palavra background vem do inglês e como muitas palavras desse idioma, ela pode ter vários significados, mas para nós o significado que interessa é esse:
A totalidade dos elementos (antecedentes familiares, classe social, educação, experiência etc.) que contribuíram para a formação de um indivíduo, moldaram sua personalidade e influenciam seus rumos.
Transportando isso para o nosso hobby, o background nada mais é do que o passado do seu personagem. Tudo o que ele ou ela fazia antes de se tornar um aventureiro ou investigador, por exemplo.
Apesar do seu personagem ser o resultado de um conjunto de números e regras, o que amarra tudo isso e dá forma ao mesmo, é o seu background. O que levou o seu personagem a escolher sua atual profissão? E suas armas, há um motivo por trás dessa escolha? Por que ele se veste dessa forma? Todas essas perguntas poderiam ser respondidas montando um background interessante e que tanto o mestre quanto o jogador podem se beneficiar disso. Mas por onde começar?
Método 1: Perguntas e respostas
Infelizmente não existe uma regra padrão para montar um bom background nem uma técnica matadora. Cada sistema traz dicas e exemplos de como proceder e/ou o que levar em consideração. Eu costumo usar um sistema definido perguntas para montar um background de maneira mais rápida e fácil. Esse sistema não é meu, mas sim do Sistema Daemon, presente em todos os livros da editora. Abaixo segue o modelo:
História
- Qual é o nome dele?
- Quantos anos ele tem?
- Quando e onde ele nasceu e cresceu?
- Ele conheceu seus pais? Como foi sua infância?
- O que sente sobre eles?
- Os pais dele ainda estão vivos?
- Se sim, como e onde eles vivem?
- Ele tem irmãos ou irmãs? Sabe onde eles estão e o que estão fazendo? (válido para outros tipos de parentes).
- Ele teve amigos em sua juventude? Descreva-os.
- Ele é casado (ou noivo ou viúvo)? Se for, como aconteceu?
- Ele tem filhos? Se tem, como eles são?
- Ele recebeu educação formal? Se teve até onde ela foi?
- Como ele aprendeu o que ele faz hoje e a ser o que ele é?
- O que seu Personagem faz para viver?
- Por que ele escolheu essa profissão?
- Como ele é fisicamente em detalhes?
- Qual é o aspecto da aparência física dele que é mais distintiva ou mais facilmente notada?
Objetivos / Motivação
- Ele tem algum objetivo? Se tem, qual é?
- E por que ele tenta fazer isso?
- O que ele vai fazer quando conseguir cumprir seu objetivo?
- O que ele vai fazer se falhar?
- O que ele considera seu maior obstáculo no seu sucesso?
- O que ele faz para sobrepujar esses obstáculos?
- Se ele pudesse mudar alguma coisa no mundo, o que seria?
- Se ele pudesse mudar alguma coisa em si mesmo, o que seria?
- Ele tem medo de alguma coisa?
Personalidade
- Como as outras pessoas descrevem seu Personagem?
- Como ele se auto-descreveria?
- Qual é a atitude de seu Personagem em relação ao mundo?
- Qual é a atitude dele em relação as outras pessoas?
- Ele tem atitudes diferenciadas para certos grupos de pessoas?
Gostos e preferências
- Como ele passa suas horas de lazer?
- Que coisas ele gosta de vestir?
- O que ele gosta mais no trabalho / ocupação?
- O que ele gosta de comer?
- Ele coleciona algo ou tem algum passatempo?
- Ele tem algum animal de estimação?
- Que tipo de companhia ele prefere?
- E que tipo de amante?
Ambiente
- Onde ele mora e como é esse lugar?
- Como é o clima/atmosfera?
- Por que ele mora lá? Quais são os problemas comuns lá?
- Como é sua rotina diária?
Sim, são 46 perguntas! Quanto mais perguntas respondidas, mais rico será o seu background, mas com apenas algumas respostas já é possível seguir em frente e ter uma personagem interessante.
Método 2: Escolhas aleatórias
Outra abordagem válida, e que gosto bastante, é ter tabelas prontas com itens sobre comportamento, aparência física e outras coisas. O jogador apenas tem que rolar alguns dados e depois preencher as poucas lacunas que ficarem.
Quem usa isso muito bem é o rpg Shadow of The Demon Lord com suas ancestralidades. O livro trás a seguinte definição:
Uma ancestralidade dá noções sobre a terra natal, cultura, inclinação religiosa e aparência do personagem. Ela também indica as áreas nas quais o personagem se destaca e nas quais ele ainda tem dificuldade. Ancestralidades fornecem indicações de histórias para guiar o jogador sobre como interpretar seu personagem e apresentam quais são suas características iniciais.
Aqui temos todos os elementos necessários para construir um background elaborado. Usando a Ancestralidade dos Humanos como exemplo, você rola dados para definir traços da sua personalidade, religião, idade, estatura, aparência e o antecedente (coisas que aconteceram antes da aventura iniciar).
Tabela – Personalidade
3d6 | PERSONALIDADE |
3 | O personagem é cruel, maldoso e egoísta. Ele gosta de fazer outros sofrerem. |
4 | O personagem é errático e imprevisível. Ele tem dificuldades para manter sua palavra e tende a ter comportamentos inconstantes. |
5-6 | O poder é o que importa. Obediência à autoridade é seu maior ideal. |
7-8 | O personagem cuida de si mesmo antes de tudo. Ele consideraria trair seus amigos. |
9-12 | O personagem coloca os seus interesses e os dos seus amigos acima de tudo. |
13-14 | O personagem ajuda os outros porque é a coisa certa a se fazer. |
15-16 | O personagem tenta fazer o que acha certo, mesmo que quebre leis e convenções sociais. |
17 | Sua honra e dever guiam tudo que faz. |
18 | O personagem está comprometido com causas nobres e boas. Ele nunca se separa de suas crenças mesmo que a recusa custe sua vida. |
Tabela – Antecedente
d20 | ANTECEDENTE |
1 | O personagem morreu e voltou a vida. Ele começa o jogo com 1d6 de Insanidade. |
2 | O personagem foi brevemente possuído por um demônio. Ele começa o jogo com 1 de Corrupção. |
3 | O personagem passou 1d6 anos como prisioneiro de uma masmorra. |
4 | O personagem matou alguém a sangue frio. Ele começa o jogo com 1 de Corrupção. |
5 | O personagem contraiu e se recuperou de uma doença terrível. |
6 | O personagem pertencia a um culto estranho e viu muitas coisas estranhas. Ele começa o jogo com 1 de Insanidade. |
7 | As fadas o mantiveram prisioneiro por 1d20 anos. |
8 | O personagem perdeu um ente querido e essa perda ainda o assombra. |
9 | O personagem perdeu um dedo, ou alguns dentes, ou uma orelha, ou possui uma cicatriz. |
10 | O personagem ganha a vida trabalhando em uma profissão. |
11 | O personagem se apaixonou e o relacionamento terminou bem ou ainda existe. |
12 | O personagem tem um cônjuge e 1d6-2 filhos (mínimo 0). |
13 | O personagem viajou muito. Ele fala um idioma adicional. |
14 | O personagem recebeu educação. Ele sabe ler a língua comum. |
15 | O personagem salvou sua cidade de monstros terríveis. |
16 | O personagem frustrou um plano para matar alguém importante e levou o assassino à justiça. |
17 | O personagem executou um grande feito e é um herói para as pessoas de sua cidade natal. |
18 | O personagem encontrou um velho mapa do tesouro. |
19 | Alguém importante e poderoso deve um favor ao personagem. |
20 | O personagem conseguiu algum dinheiro e começa o jogo com 2d6 cc. |
Perceba que até mesmo essa abordagem aleatória ainda permite que você role outros tipos dados para outras situações.
A grande vantagem desse método é que você consegue montar um background em poucos minutos e as tabelas são altamente reutilizáveis. A desvantagem aqui é construir tais tabelas. Por sorte já existem várias coisas prontas na web, basta um pouquinho de paciência na sua busca.
Método 3: Todo mundo se conhece
Quem já mestrou em eventos sabe como as coisas precisam ser mais otimizadas nessas situações. Uma abordagem que uso em quase todas as aventuras é que todo o grupo já se conhece de longa data e que já trabalham juntos a algum tempo.
Isso tem 2 propósitos. O primeiro é evitar que os jogadores fiquem desconfiando uns dos outros (sim, isso corre às vezes). Assim, sempre que as coisas começam a sair um pouco dos eixos eu digo: “lembrem-se, vocês já se conhecem a um bom tempo, e isso não seria um problema, blá, blá, blá…”. O segundo motivo é ajudar o jogador que tem alguma dificuldade em elaborar um passado para o seu personagem.
Se mesmo assim o jogador quiser que o seu personagem tenha um passado, tudo bem. Ele ainda é livre para inventar a história que quiser, contanto que não vá contra os interesses do grupo.
Porém, mesmo aqui, eu costumo usar a mesma mecânica que o LendroPug do RPG Notícias chama de VERDADES. Trazendo aqui a explicação dele:
“De modo prático, VERDADES são frases ou palavras que os jogadores usam para descrever detalhes de algo que estão conhecendo ou se lembrando no começo ou durante o meio da aventura de RPG”.
Essa “metodologia” ajuda a dar coesão ao grupo, fazendo com que eles criem coisas em comum a respeito do cenário, NPCs ou da própria história do jogo. Também ajuda a criar um relacionamento entre o grupo, compartilhando locais e pessoas.
Método 4: A folha em branco
A outra abordagem que eu gosto é a do personagem com amnésia. O personagem realmente não se lembra de quase nada de sua vida pregressa e fica a critério do mestre preencher as lacunas faltantes. Muitos mestres podem odiar essa abordagem, assim como muitos jogadores podem adorar, mas eu sempre escolho esse caminho com cuidado.
Quando estou mestrando e o jogador faz um background com essa premissa, eu já deixo claro que vou usar isso a favor da históra da aventura ou campanha. Na primeira sessão, eu coloco um redutor em todos os testes que o jogador for realizar, a final de contas, ele não se lembra se sabe ou não fazer determinada ação, correto?
Imagine o jogador que escolhe jogar como um ladrão. Será que o personagem dele realmente era um ladrão no passado?
Partindo desse ponto, sempre descrevo as cenas e ações desse jogador como se o personagem sempre estivesse em dúvida se aquilo é certo ou errado. Se ele for manejar uma arma por exemplo, ela poderá não lhe parecer familiar. Ao tentar comprar itens na taverna mais próxima, o vendedor pode se recusar a vender pra ele, e assim por diante.
A ideia é deixar o jogador um pouco desconfortável no início do jogo, por não saber exatamente o que está acontecendo. Dependendo de como for a resposta do seu jogador, frente a essas situações, você como mestre pode continuar a construir a história em torno desse passado esquecido.
Outro truque que uso é, sempre que surge alguma pista na aventura, como um NPC interessante, tento vincular o personagem sem background a ele. Isso acrescenta um “tempero a mais” a história. Lembro-me de uma situação onde os jogadores deveriam encontrar um informante em uma local secreto. Quando eles chegaram, o informante entrou em pânico e começou a falar coisas sem sentido, apontando para o personagem sem background. Em seguida fugiu correndo, deixando o grupo sem respostas. Isso levou todo mundo a se questionar o que diabos havia acontecido com o personagem do jogador.
Outro exemplo foi quando, lá pela quinta sessão da campanha, o vilão que vinha aterrorizando os personagens se revela irmão do personagem sem background. Na hora da revelação o jogador chegou a protestar, dizendo que ele não tinha parentes próximos e que aquilo não fazia sentido. Eu apenas o lembrei da nossa primeira sessão de jogo onde eu disse: “Certeza que não quer escrever nem duas linhas sobre o passado do seu personagem? Talvez eu use isso como parte da trama, tudo bem?”.
A malandragem aqui foi fazer os jogadores esquecerem que isso era relevante e usar esse fato depois de algumas sessões.
Mas posso jogar sem isso?
A resposta mais óbvia é sim, afinal de contas, jogar RPG é, antes de mais nada, se divertir. Se você fica estressado cada vez que precisa montar um personagem, alguma coisa está errada. Ou você precisa mudar de grupo/sistema ou dar um tempo no RPG.
A verdade é que você pode sim, jogar sem criar um passado para o seu personagem. Você provavelmente vai conseguir interagir com todos os NPCs e situações que o mestre colocar, mas pode ter certeza que tudo fica mais interessante quando o seu personagem tem sua própria identidade dentro do mundo de jogo.
Marcelo JK “Zamboman”
Jogador e Mestre de RPG desde a época em que os dinossauros caminhavam pela Terra. Fã de ficção científica, mestre de Star Wars Saga e mestre em tirar aventuras improvisadas da cartola.