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O gênero Cyberpunk e o RPG

O retorno do gênero cyberpunk à cultura pop e sobretudo ao RPG.


Por: Mantsor | 19/10/2017

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Mestre RPG

O gênero cyberpunk andava meio esquecido nos últimos anos, tanto no cinema quanto no RPG. Até que este ano tivemos o lançamento de dois excelentes representantes do gênero nos cinemas: Ghost in The Shell: A Vigilante do Amanhã e Blade Runner 2049. Alguns fãs das respectivas obras “originais” (Ghost in The Shell de 1995 e Blade Runner: O Caçador de Andróides de 1982) não têm recebido com grande entusiasmo essas obras revisitadas, porém não há dúvida que elas têm feito grande sucesso e têm contribuído para um renascimento do cyberpunk na cultura pop.

Mas afinal, o que é o Cyberpunk? Ele é nada mais que um subgênero da ficção científica que mostra um futuro distópico (decadente, pessimista), onde a tecnologia teve um impacto negativo na sociedade – exatamente o oposto das utopias futuristas como a que vemos no universo de Star Trek (onde a tecnologia solucionou a maior parte dos problemas da humanidade). Alguns gostam de resumir a definição do gênero na expressão “high tech, low life” (alta tecnologia e baixa qualidade de vida). Essa expressão não deixa de estar certa, porém ela apenas arranha a incrível mistura de elementos estéticos, tecnológicos, filosóficos e sociais que tornam o cyberpunk tão peculiar e fascinante.

Embora cada cenário cyberpunk tenha suas particularidades, existem alguns elementos que são comuns. Um dos principais é a influência da tecnologia na sociedade e no ambiente: alimentos sintéticos, automatização de serviços, cidades extremamente populosas e poluição. A humanidade pode estar vivendo em ilhas superpovoadas de tecnologia em meio a desertos estéreis, que surgiram como resultado de resíduos produzidos por uma super industrialização, ou mesmo como resultado de guerras nucleares.

As cidades do futuro podem ser o último bastião da civilização | Fonte: Alphacoders Wallpapers

Outro elemento quase obrigatório é a profunda integração homem-máquina. Implantes cognitivos, membros cibernéticos, interfaces de rede e até mesmo corpos biônicos completos são algumas das muitas opções encontradas em mundos distópicos futuristas. Embora sejam itens comuns, geralmente os de melhor qualidade são extremamente caros e disponíveis apenas para poucos. E isso geralmente acaba tendo como consequência o surgimento de um mercado negro. Outro resultado dessa integração é o acesso onipresente ao fluxo de informações da rede, o que cria um terreno fértil para os hackers, o cyber terrorismo e todo tipo de intriga no mundo digital.

Em alguns cenários também são exploradas questões filosóficas profundas, pois a fronteira que separa um robô com uma IA senciente de um ser humano se torna muito tênue. Andróides se parecem e agem como seres humanos, podendo até mesmo terem direitos civis. E nos casos ainda mais drásticos, a humanidade pode ter sido subjugada pelas máquinas e os poucos que resistiram foram marginalizados e tem de lutar pela sua sobrevivência.

Em Ghost in the Shell o que diferencia o homem da máquina é o seu “fantasma” | Fonte: Divulgação

E finalmente temos o controle corporativo da sociedade. Quase sempre existe uma entidade controladora que rege a sociedade. Na maior parte dos casos essa entidade é uma ou mais mega corporações, que possuem o monopólio de alguma tecnologia importante. Em outros casos o próprio estado é extremamente controlador e burocrático, monitorando de perto todos os cidadãos e violando as liberdades individuais em detrimento de uma suposta garantia de segurança.

A popularização do gênero cyberpunk começou na literatura, com obras de referência como Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (1968, de Philip K. Dick) e Neuromancer (1984, de William Gibson) e logo atingiu os cinemas, sobretudo a partir dos anos 80: Blade Runner, Tron, Exterminador do Futuro, Robocop, Juiz Dredd, Total Recall, Gattaca, O Quinto Elemento, Matrix e Minority Report são alguns dos exemplos mais conhecidos (alguns tiveram refilmagens e continuações – geralmente não tão bem sucedidas). Tivemos também ótimos representantes no mundo dos mangás e animes, como Akira (1982, de Katsuhiro Otomo), Ghost in The Shell (1989, de Masamune Shirow) e Blame! (1998, de Tsutomu Nihei).

Blade Runner – o filme que definiu o gênero | Fonte: Divulgação

E então nos anos 90 o cyberpunk finalmente chega com força ao mundo do RPG. Os principais títulos foram Cyberpunk 2020 (1988, R Talsorian Games), Shadowrun (1989, FASA), GURPS Cyberpunk (1990, Steve Jackson Games), Cyberspace (1989, Iron Crown Enterprises) e SLA Industries (1993, Nightfall Games). Essa temática fez tanto sucesso que tivemos inclusive os 3 primeiros desses títulos trazidos para o Brasil, numa época em que o mercado era dominado pela fantasia de AD&D e pelo horror gótico de Vampiro.

Nos anos 2000 infelizmente esses títulos foram sumindo aos poucos, se tornando itens de colecionador. Não podemos negar que a enchente de títulos com o selo d20 nessa época tenha contribuído para eclipsar a temática cyberpunk (embora tenha chegado a surgir um d20 Modern Cyberscape), mas acredito que o principal motivo foi outro, bastante simples: os títulos cyberpunk dos anos 90 se tornaram extremamente datados e, de certa forma, obsoletos. Embora implantes cibernéticos não sejam algo comum hoje em dia, grande parte da tecnologia “imaginada” para os anos 2020 foi superada, sobretudo na área da computação e comunicações. Apenas a título de ilustração, no GURPS Cyberpunk é dito que as mídias de armazenamento mais comuns seriam discos de 10GB (enquanto que um blu-ray de hoje tem capacidade de 50GB) e nem sequer se imaginava algo como os pendrives, que chegam a ter capacidade de 1TB.

A era de ouro do RPG cyberpunk no Brasil | Fonte: Google Images

A pergunta que cabe aqui é: então o que temos de RPGs Cyberpunks atuais em português? Felizmente, nessa era de financiamentos coletivos, a Editora Pensamento Coletivo nos trouxe o Interface Zero 2.0, em 2016, e a New Order Editora está trazendo esse ano o Shadowrun 5ª Edição, ambos financiados com grande sucesso através do catarse.

Interface Zero 2.0 é um RPG cyberpunk tradicional, ambientado no ano de 2090. Embora tenha sido trazido pela Pensamento Coletivo, ele utiliza o sistema de regras genérico Savage Worlds, publicado em português pela Retropunk. Nele você vai encontrar todos os elementos tradicionais do gênero: mega corporações corruptas, andróides com aspecto humano, acesso permanente a DataNet por meio de um implante cibernético (o TAP- Tendril Access Processor) e é claro que os personagens levam uma vida de proscritos no submundo.

Interface Zero 2.0 | Fonte: Editora Pensamento Coletivo

Já o Shadowrun é um velho conhecido dos rpgistas brasileiros, pois a segunda edição foi lançada por aqui em 1995, traduzida pela Ediouro e assumida posteriormente pela Devir. A 5ª Edição se passa agora no ano de 2075 (a primeira se passava em 2050), mas os conceitos, ainda que atualizados, permanecem os mesmos. O sistema de regras ainda se baseia no antigo sistema D6. Os personagens geralmente estão envolvidos em intrigas de espionagem industrial, onde os deckers (hackers do futuro) operam a partir da Matrix (não confunda com o filme!). E é claro, os elementos que são motivos de crítica para alguns puristas, também estão lá: magia, raças e criatura fantásticas fazem parte desse cenário. Por esse motivo, alguns não consideram Shadowrun um cenário cyberpunk e sim de fantasia urbana.

Ok, “mas e se eu domino o idioma inglês, que opções tenho?”, você pode estar se perguntando. Nesse caso temos duas sugestões para você: The Sprawl (2015, da Ardens Ludere) e o The Veil (2017, da Samjoko Publishing), ambos baseados no sistema de regras Powered by Apocalypse, desenvolvido inicialmente para os jogos Apocalypse World, Dungeon World e Monsterhearts. The Sprawl é um jogo orientado a missões, com foco nas corporações e suas tramas. A estrutura em geral dele é muito parecida com Shadowrun. Os personagens são construídos em torno de classes padrão, que definem arquétipos como hacker, assassino e infiltrador.

The Veil não é tão focado em missões e sim na exploração de questões filosóficas e existenciais, nos limites entre o mundo físico e digital. Ao invés de trazer classes pré-definidas, aqui o seu personagem é definido pelas suas habilidades e características pessoais. Se você é fã de Ghost in the Shell e Blade Runner, esse será o seu jogo com certeza.

Opções para quem domina o inglês | Fonte: Kickstarter

E finalmente, se você é fã inveterado do sistema Dungeons and Dragons, temos um RPG que recebe aqui a menção honrosa por utilizar o sistema do D&D 5th. Trata-se do Neurospasta 5E (2017, da Dias Ex Machina Games), que utiliza as classes do Ultramodern5 (2016, da Dias Ex Machina Games) – uma espécie de d20 Modern Future atualizado para a quinta edição, que possui uma versão gratuita (SRD). O Neurospasta é fortemente inspirado em Ghost in the Shell, pois o seu cenário é uma cidade high-tech conhecida como Archon, onde a segurança pública é garantida pela Division of Public Safety (alguém aí falou em Seção 9?), com o foco em intrigas políticas e onde praticamente todos os cidadãos estão conectados na rede global. Dessa maneira, ele foge um pouco do estereótipo de futuro decadente da maioria dos cenários cyberpunk.

Espero que tenha gostado do conteúdo e não deixe de colocar nos comentários qual o seu sistema favorito para jogar no gênero cyberpunk.

Bônus: A arte que ilustra a capa desse post é de Josan Gonzalez. É dele a arte da capa de uma das edições de Neuromancer. Se quiser conhecer um pouco mais do trabalho desse artista fantástico veja essa matéria do The Verge.

Robertson “Mantsor” Schitcoski

Robertson “Mantsor” é engenheiro de computação e mora em Brasília. Ingressou no mundo do RPG mestrando todo tipo de cenário em GURPS, que é o seu sistema de estimação. Hoje prefere Chamado de Cthulhu, que já lhe rendeu algumas das melhores experiências com o hobbie.